quinta-feira, setembro 11, 2014

Dentro da Noite (João do Rio)






Esta resenha é para quem achava que Noite na Taverna era a única obra clássica da literatura brasileira considerada como sendo de terror. Na verdade há vários dos nossos grandes autores que adicionaram aos seus textos uma pitada do sobrenatural ou afins, incluindo Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. Mas o livro que pretendo apresentar desta vez aqui na Biblioteca Mal Assombrada é o subestimado Dentro da Noite, de João do Rio (1881 - 1921).

Bem, mas antes de tudo, quem é esse cara? João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (ufa!), cujo pseudônimo mais conhecido era João do Rio, foi um jornalista da cena carioca no início do século XX (a chamada Belle Époque brasileira). Mulato, obeso e homossexual (o que me força a encará-lo como uma espécie de Truman Capote tupiniquim), ele sentiu na pele o preconceito pelas suas diferenças, sendo desprezado publicamente por várias personalidades e até mesmo vítima de uma covarde agressão física quando foi agredido, enquanto almoçava, por um grupo de nacionalistas. Mas, ainda assim, ele convivia com a classe alta da época, e chegou até a ocupar uma cadeira da Academia Brasileira de Letras!

Talvez tenha sido por causa desse paradoxo, de luxo e notoriedade versus desprezo e marginalidade, que seus textos tenham oscilado tanto entre uma faceta e outra: se normalmente ele preferia usar uma linguagem elegante e rebuscada, cheia de expressões em francês, como era a moda na época, às vezes ele partia para o grotesco, descrevendo as cenas chocantes que ocorriam nos cantos mais sujos da cidade.

Pois é esse o clima de Dentro da Noite, lançado em 1911, que reúne onze “contos negros”, já publicados anteriormente em jornais, e outros sete inéditos. Podemos dizer que as semelhanças desta com a obra de Álvares de Azevedo que citei no início do texto não se resumem à palavra “noite” no título. Trata-se de uma coletânea de relatos urbanos sensuais, sórdidos e fúnebres, mas ao contrário do clima essencialmente europeu da obra de Álvares de Azevedo, João do Rio adicionou alguns elementos bem brasileiros às suas páginas.

O Bebê de Tarlatana Rosa, por exemplo, passa-se em uma data muito representativa para nós: o carnaval. É quando o protagonista, disposto a frequentar vários bailes da cidade em busca de todos os tipos de excessos, envolve-se com uma misteriosa foliã fantasiada que nunca retira o nariz de borracha que lhe esconde o rosto. Somente depois de ter passado algumas noites de luxúria com a moça é que ele saberá o motivo, para sua cruel infelicidade. Posso dizer que o final dessa história é um dos mais chocantes que já conheci

O Carro da Semana Santa já traz uma espécie de lenda urbana, sobre uma misteriosa carruagem que anualmente faz uma verdadeira peregrinação durante a semana santa, permanecendo estacionada próximo a todas as igrejas da cidade, com algo muito estranho acontecendo em seu interior.

E o melhor conto de todos certamente é o que dá título à obra, sobre um homem que perde tudo graças a uma estranha obsessão que lhe atormenta: a necessidade de espetar agulhas e alfinetes nos braços de sua noiva e, mais tarde, em desconhecidos no metrô. Acho que poderíamos fazer uma interessante analogia deste personagem com um vampiro.

Mas infelizmente nem tudo é perfeito. Há casos como o de Aventura no Hotel, que traz uma datada e insatisfatória trama policial, totalmente previsível, envolvendo o desaparecimento dos pertences de alguns hóspedes. Aliás, João do Rio caiu em uma armadilha criada pela sua própria popularidade: com modismos demais empregados em seu texto, a crítica simplesmente o rejeitou e seu nome ficou esquecido durante muito tempo. Apenas recentemente é que ele foi redescoberto e voltou a ser discutido no ambiente acadêmico.

Ainda assim, apesar dos deslizes, há vários contos que merecem ser conhecidos pelos fãs de horror. Além dos que citei, são obrigatórios: História de Gente Alegre, que apresenta a trágica paixão - movida à morfina - entre duas prostitutas; A Mais Estranha Moléstia, sobre um jovem atormentado por um olfato anormalmente aguçado, e A Peste - outra incursão pelo grotesco, com descrição de deformidades físicas.

Dentro da Noite já foi descrito como “a maior coleção de taras e esquisitices até então publicada na literatura brasileira”. Seus contos tratam de diversas deformações sensoriais, inclusive sadomasoquistas, e seu clima opressivo e apavorante é cercado de sensualidade e elementos góticos

Para quem se interessou pelo conteúdo, uma boa notícia: esta publicação já é de domínio público, e pode ser facilmente encontrada na internet, disponível para download gratuito. Mas não adianta procurar outros livros do autor neste mesmo estilo: Dentro da Noite é diferente de todo o resto de sua obra, que inclui muitas crônicas jornalísticas e até histórias infantis (o que comprova minha obsessão por escritores que variam seu trabalho entre o mundo dos adultos e o das crianças).

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