segunda-feira, abril 01, 2024

Caçando discos-voadores (L.F.Riesemberg)

 


Certa vez meus pais chegaram de viagem estupefatos. Era uma agradável noite de sexta, em pleno Verão, e eles vinham da capital – um trajeto de duas horas e meia, no máximo, que eles faziam cerca de uma vez por mês. No carro ainda estavam minha irmã, meu tio e uma vizinha, então todos foram testemunhas. Era normal chegarem cansados, porém comentando animadamente algo de “extraordinário” que ocorrera em sua rápida visita à cidade grande. Qualquer coisa podia ser motivo de espanto para pacatos moradores de uma cidadezinha do interior. Porém, daquela vez, era algo realmente grande: minha família relatava, com toda a seriedade, ter presenciado a aparição de um óvni.

Eu quis saber todos os detalhes, é claro, e foi incrível poder ouvir as diferentes versões de todos os passageiros. Em resumo, o que ouvi foi que já no terço final da viagem, pouco depois de anoitecer, minha irmã, no banco de trás do carro, notou pela janela uma luz no céu e brincou, dizendo estar vendo um disco-voador. Com a insistência do objeto luminoso que viajava acompanhando o veículo, todos os ocupantes se interessaram e passaram a observar a estranha luz em movimento. Meu pai, que dirigia e, portanto, não podia ficar olhando, resolveu parar no acostamento e também viu, com mais detalhes, o estranho objeto voador.

É claro que várias teorias tentaram explicar o fenômeno, como a possibilidade de ser um avião (não era, pois estes sempre voam em linha reta, e aquele fazia movimentos de sobe e desce). De volta à estrada, em certo momento todos viram a luz mudar de direção e desaparecer de vista em altíssima velocidade, deixando um rastro branco que logo se dissipou. Até a hora de ir para a cama eu os ouvi contando essa história muitas e muitas vezes, e ninguém desmentiu ou duvidou das próprias palavras.

Naquela noite ninguém conseguiu dormir direito, principalmente eu, lamentando não estar presente no carro. Sempre me fascinaram todos os tipos de mistérios, e a vida em outros planetas é um dos que mais me intrigam. Eu daria tudo para ter um contato com um ser extraterrestre, ou pelo menos avistar uma nave espacial, como, aparentemente, toda a minha família o fez naquele dia.

Excitados com o testemunho e sentindo o meu desapontamento por não ter presenciado, meus pais decidiram, na noite seguinte, me levar até o local do avistamento. Rumamos sem tirar os olhos do céu, que estava apinhado de estrelas, e paramos em um campo próximo à rodovia, debaixo de araucárias, aguardando novo espetáculo.

Ficamos lá por mais de uma hora, meio temerosos do que podia ocorrer, conversando sobre aquele que era um dos maiores mistérios do universo. Somos tão pequenos e há tanto espaço, tantos planetas... Faria algum sentido se fôssemos os únicos seres inteligentes do universo? Pensávamos nessas ideias enquanto aguardávamos que um disco-voador surgisse no céu e... quem sabe o que aconteceria depois?

Não vimos nada. Não apareceu qualquer sinal de luz ou nave no céu, e voltamos para casa frustrados. Talvez estivéssemos aliviados, por estarmos a salvo após nos colocarmos em possível risco diante do desconhecido. Mas a verdade é que aquela noite em que minha família viu um objeto voador não-identificado nos marcou profundamente e é um assunto que sempre surge em uma roda de conversa numa noite estrelada.

Às vezes estamos reunidos, olhando para o céu à procura de qualquer coisa que nos maravilhe, e alguém sempre irá lembrar do ocorrido. Desde então nunca nenhum de nós viu nada igual, mas a remota possibilidade de ver novamente já nos manteve tanto tempo com os olhos voltados para cima, que já testemunhamos, em conjunto, inúmeros outros fenômenos maravilhosos, verdadeiros presentes da Criação para nossas insignificantes vidinhas aqui embaixo. Chuvas de meteoros, satélites, cometas, constelações e até a simples passagem de um avião, com suas luzes piscando, são cenas para gravar em nossas retinas. O silêncio da noite, em uma calma noite numa cidade pequena, permite que até mesmo possamos ouvir o som de uma solitária aeronave, a quilômetros de distância acima de nós. E é uma maravilha, em uma noite gloriosa, testemunhar, ao lado de pessoas que você ama, qualquer um desses pequenos milagres.

Se veremos, algum dia, algo realmente espantoso? Tenho certeza que sim. Até lá, sempre teremos esses encontros incríveis, olhando o céu noturno, conversando sobre o Cosmos e o sentido da vida, nos sentindo pequeninos diante de algo tão imenso e maravilhoso, eternamente renovando a nossa infinita capacidade de assombro.

quarta-feira, março 27, 2024

O Último Dia (L.F. Riesemberg)

 


Cheguei ao hospital por volta das sete e, do alto de sua cama, ele sorriu ao me ver entrar. Emagrecido, parecia menor sob aquele amontoado de cobertas, vestindo um gorro grande demais para a cabeça. Meu pai era apenas uma sombra do homem forte que sempre fora, mas ainda demonstrava uma resiliência desconcertante, nem sequer pensando em desanimar.

O cumprimentei com um beijo no rosto e sentei na poltrona ao lado. Ele estava animado por ter passado uma noite tranquila, o que significava simplesmente que não havia tido a necessidade de ser transferido para a UTI, como acontecera algumas vezes no último mês. Sua saúde piorara drasticamente desde o início daquele ano, mas já havia sido internado tantas vezes, e melhorado de emergências tão assustadoras, que nada mais nos angustiava tanto. Naquele momento ele estava se sentindo bem, e era isso que importava.

Ele reclamou de frio, o que foi amenizado ligando o aquecedor, e depois o ajudei com o café da manhã, dando colheradas de mingau de aveia em sua boca. Ligamos a tv, e estava passando um programa de sobrevivência na neve, o que garantiu nossa atenção por alguns minutos, até que a chegada de duas enfermeiras interrompeu o programa. Era hora do banho.

Elas despiram meu pai, apesar de seus protestos contra o frio, e ali mesmo, no leito, o higienizaram com lenços umedecidos e cremes. Em seguida trocaram sua fralda, visão que sempre me fazia me sentir estranho, por mais que eu já tivesse presenciado aquela cena outras vezes. Parecia que ali era eu o homem, e meu pai a criança, e isso não me soava nada natural. Apesar disso, meu pai estava muito brincalhão e interagiu alegremente com as moças, fazendo piadas e arrancando gargalhadas de todos nós. Por fim, ajudei-as a trocar os lençóis, já que fazer aquilo sem tirar o paciente da cama exigia certa dose de esforço.

Toda aquela movimentação foi cansativa para ele, pois logo que as enfermeiras se despediram, pediu para tirar um cochilo. Apaguei as luzes e fiquei em silêncio, esperando que descansasse. Naquela tarde ele passaria por uma pequena cirurgia, o que não deixava de ser preocupante. Cada dia havia uma nova surpresa em relação ao seu estado de saúde, e nos restava ter a esperança de que ele atravessaria, mais uma vez, outro desafio.

A força de meu pai era incrível. Eu nunca terei a garra para enfrentar tantas dores e desafios como ele demonstrara, na última década, desde que seus problemas se tornaram mais evidentes. Lembro de muitas vezes segurar sua mão enquanto um enfermeiro tentava achar uma veia boa, picando insistentemente seu braço com uma grossa agulha, pois eu queria sentir a dor por ele.

Aquele sono durou até o momento em que o médico foi ao quarto e deu algumas explicações sobre como seria a vida de meu pai depois que ele voltasse para casa. Uma alimentação muito restrita, sem líquidos, com a necessidade de três hemodiálises por semana. Papai ouviu tudo com a habitual resiliência e apenas brincou: “Puxa, eu queria sair daqui direto para uma churrascaria”, tirando uma pequena gargalhada de si mesmo.

Ficamos em silêncio após a saída do doutor, imaginando como seria essa nova vida após a alta. Eu não queria pensar daquele jeito, mas não seria uma vida de verdade. Exigiria muitos esforços, haveria muito sofrimento, mas ainda assim ele não estava reclamando, e eu tinha certeza de que se manteria assim, até o último dia.

Devido a cirurgia marcada, naquele dia ele não poderia almoçar. Fiquei com muita pena quando chegou o meu prato e ele sentiu o cheiro de comida. Comi o mais rápido que pude, para não torturá-lo com aquilo, e depois procurei conversar sobre histórias felizes do passado, na tentativa de distraí-lo.   

Pouco depois vieram buscá-lo. Não falávamos a respeito do que estava acontecendo. Apenas obedecíamos às exigências do momento, que incluíam vestir o camisolão, o que significava que meu pai passaria frio outra vez. Eu acompanhei a enfermeira para fora do quarto, ajudando-a a empurrar a maca, sem tirar os olhos do meu pai, que parecia saber o que ia acontecer. Seus olhinhos levemente tristes me diziam muito naquele trajeto. Eu podia ler neles um pouco de medo, mas nem de longe se comparava ao terror que eu estava sentindo, por ver meu pai tão frágil sendo levado para uma cirurgia.

E se desistíssemos? Ele estava tão bem naquele dia! Brincava. Fazia piadas. E se prolongássemos aquelas horas agradáveis? Pensei em despistar a enfermeira e correr com a maca para fora do hospital, colocá-lo ao sol, que ele não sentia na pele há mais de um mês. Ele teria gostado de fazer uma loucura dessas comigo?

Mas tudo o que fiz foi acompanhá-lo em silêncio, com as pernas e o olhar, até o último ponto em que eu podia ir, diante da entrada do centro cirúrgico. Dei um último beijo em seu rosto e ele foi, com a coragem de sempre, sem deixar de dizer uma última frase, que expressava toda a sua existência perante a minha: “Filho, eu te amo. Nunca se esqueça disso...”. Falou lentamente, talvez segurando o choro, e eu respondi de imediato: “Eu também te amo, pai”, sabendo que ele estaria logo ali, sorrindo outra vez, como sempre fizera depois de tantas outras adversidades muito piores que aquela, e em cujo exemplo sempre me inspirarei, até o dia em que eu próprio, fatalmente, enunciar a minha última despedida.

terça-feira, março 26, 2024

A Fogueira (L.F.Riesemberg)

 

Toda sexta-feira era dia de faxina, e recebíamos a diarista que vinha fazer a limpeza pesada. Mas mamãe não deixava por menos e também pegava na vassoura e no esfregão para deixar a casa brilhando. Lenços amarrados na cabeça, elas viravam tudo, sempre animadas, limpando cada mancha dos sofás e cada pingo de gordura de trás do fogão. Era um momento mágico para mim, que via o habitual costume do dia-a-dia ir pelos ares, exatamente como o pó que era varrido de cada canto da residência.

Aquele dia era especial não só pela momentânea bagunça que ficava pela casa, com móveis arrastados e tapetes arrancados, revelando paredes e pisos nus, mas também pela mistura de odores de produtos de limpeza que se espalhavam pelo ar e ainda pela sinfonia de ruídos que tomava conta dos cômodos, como o das escovas raspando paredes e das vassouras penteando as lajotas.

Nesse dia não dava para assistir aos meus desenhos animados na TV, visto que o aspirador de pó faria um barulho tão alto e daria tantas interferências na imagem que minha mãe recomendava eu fosse brincar lá fora, no quintal. E eu obedecia com gosto, armando inúteis arapucas com caixas de papelão ou balaios de vime. Era muito bom sair da rotina, sabendo que eu estava de certa forma ajudando, simplesmente por não causar nenhum atrapalho.

Ao fim da tarde tudo voltaria à normalidade, com o trabalho resultando em um ambiente limpo, organizado e cheiroso, pronto para receber visitas no final de semana. Porém, antes havia o momento pelo qual eu mais esperava - o ritual de coroação daquela cerimônia. Por volta das 17 horas, quando a diarista ia embora, minha mãe terminava de varrer o quintal e lá fazia um grande amontoado de folhas secas e outros detritos, que ela chamava de ciscos, para, por fim, queimar tudo em uma formidável fogueira, cujas chamas ardiam belas e maravilhosas bem no centro do quintal, como uma pira sagrada em homenagem aos deuses.

Eu gostava de ver o fogo, mas mamãe preferia a fumaça. Ficávamos a observar o pó, o papel, o papelão e tudo mais que fora varrido, enfim, o cisco, evaporar e ser levado aos ares pelo vento, afastando definitivamente de nossa casa tudo aquilo que não mais prestava. Eu via minha mãe com a testa suada, as mãos sujas, mas sorrindo, satisfeita pelo trabalho bem realizado. Às vezes ela soltava alguma pérola, relacionando aquele puxado dia de limpeza com o trabalho que temos que constantemente fazer para eliminar o mal de nossa vida.

Eu não sabia, e muito menos ela mesma, mas eu tinha uma mãe sábia, que me mostrava como lidar com os problemas de um jeito prático, usando o simples ambiente doméstico - ainda que ela não fizesse a menor ideia que estava me ensinando algo tão importante.

Sabe, é uma pena que os problemas de hoje não sejam tão simples como os do passado. Gostaria de poder contar ainda com minha mãezinha ao meu lado, animada e varrendo todo o cisco em um grande monte no meio do quintal. Às vezes chego a fechar os olhos e mentalmente faço todo esse lixo de hoje arder em uma grande fogueira e ser levado para bem longe, como a fumaça esvoaçando naqueles fins de dias de faxina.


segunda-feira, março 25, 2024

A Mulher Dragão (L.F.Riesemberg)

 


“Meu nome é Robert, hoje é uma segunda-feira e estou indo em direção ao trabalho enquanto olho pela janela do ônibus e vejo o semáforo mudar para a luz verde”. Nessas horas, forço a voz da minha cabeça a narrar tudo o que está acontecendo à minha volta para eu voltar à realidade e não ser pego. Tem dias que funciona de primeira, mas às vezes é mais duro, como está sendo hoje. Ninguém vê o que eu vejo, mas se a coisa continuar a aparecer, as pessoas ao meu redor vão notar. Volto a narrar, com minha voz mental, o que está acontecendo ao redor: “Uma velhinha acabou de entrar no ônibus e ela paga o cobrador com moedas. Lá fora, um ciclista passa perto demais de um automóvel e leva uma buzinada”. Parece que funcionou, não estou mais vendo nada, graças a Deus.

Tudo começou há mais de um ano. Não sou homem de festanças ou bebedeiras, mas naquele carnaval um conhecido me levou até um inconfessável antro cheio de prazeres e perdições. Não é um lugar para se ir, agora o sei, mas ébrios estávamos, e nessas horas tudo o que fazemos é nos deixar guiar pelos instintos mais baixos da carne e pelas sensações efêmeras com que os sentidos nos brindam. Assim, durante horas, permaneci me entorpecendo e me relacionando com as mulheres mais estranhas com quem eu já pude estar, ainda que, naquele momento, minha razão não pudesse avaliar claramente o que eu estava fazendo.

De todas as ações que vivi e pessoas com quem estive naquela noite, uma em particular me chamou a atenção: uma mulher oriental, talvez chinesa, que por algum motivo me fez pensar em um dragão de rasgados olhos vermelhos fumegando pelas ventas. Oh, não se engane, ela era bela, com certeza. A visão do seu corpo me entorpecera, e seus longos cabelos negros me envolveram como se fossem uma coberta de seda. Os vapores dos entorpecentes me faziam ver coisas que, agora, não sei dizer se eram reais ou apenas visões.

No dia seguinte eu estava de ressaca, tentando juntar os cacos de memória para compreender tudo o que havia se passado naquela noite de devassidão. Porém, a lembrança mais forte que me vinha era a do rosto da mulher-dragão. Não sei explicar de outro modo. Ela é uma mulher, mas tem uma energia densa e escura, e me provoca arrepios. Não só isso, mas ela me causa uma ansiedade, a ponto de eu não saber mais o que estou fazendo, aonde estou indo...

Isso já me aconteceu tantas vezes, que já perdi as contas. Posso estar fazendo qualquer coisa, como estar ouvindo uma música, ou tomando um café, e de repente sinto calafrios que começam na base da coluna e sobem até a nuca. Nessas horas já sei que vou vê-la rastejando, saindo de uma sombra. Então ela se coloca à minha frente, com os cabelos imensos até o chão e os olhos com raiva, e solta um grito gutural, assustador, como se eu houvesse lhe tomado algo muito valioso e ela quisesse se vingar. Meu coração dispara, a pressão sobe às alturas e eu chego a ter espasmos e convulsões até que alguém me salve.

Meu terapeuta ensinou essa técnica, de quando começar a sentir que ela se aproxima, começar a narrar o que está se passando ao meu redor, para eu voltar à realidade. Ele diz que devo ter passado por algum trauma, algo que abalou ferozmente o meu psiquismo, e reajo deste modo. Ele está tentando se aprofundar, durante as sessões, para chegar no cerne do meu problema. Mas eu sei que não é nada disso...

Naquela noite, eu tive o azar de ser pego por uma antiga maldição. De tantos homens que passaram por aquele local sinistro naquele carnaval, fui eu o brindado. Desde então, sofro com a aparição, que me persegue quando menos espero, em qualquer canto, e me faz agir como louco. Uma vez corri para a rua, tentando fugir, e fui atropelado. Sei que, se não me cuidar, posso ser morto em uma dessas crises, por isso tenho que sempre lembrar da técnica que me traz novamente ao presente e me afasta da mulher-dragão.

Achei um livro na biblioteca outro dia. Um calhamaço de capa dura, escrito em Português arcaico. E lá mencionava uma maldição que teria chegado com um viajante que viera das Índias. Não cheguei na parte que narra como tudo começou, mas entendi que, quando alguém é pego, não há escape. A mulher é implacável e me perseguirá até conseguir o que deseja, que é minha morte. Muitos homens já caíram vítimas dela. E agora sou eu... vejo-a ali, debaixo daquele assento do ônibus, com seus olhos me fuzilando. Desvio o olhar e tento narrar o que vejo. “O ônibus passa agora pela frente do banco, e ali se encontra um vendedor de jornais”. Mas não está mais funcionando. A cada vez que volto meus olhos para lá, a vejo mais próxima. “Uma moto de entrega passa ao lado do ônibus”. Ela está mais perto. Não dá mais, não está funcionando, hoje ela vai me pegar.


terça-feira, março 19, 2024

Dente de leão (L.F.Riesemberg)

 


A cena é a de um menino entregando uma flor para uma garotinha, em retribuição ao selinho que ganhara dela outro dia. Ou melhor, este é o sentimento que quero transmitir, pois a apresentação de tal cena, na realidade, foi um pouco diferente. O menininho era um jovem de dezesseis anos, e ele não entregava uma flor, e sim um disco, à jovem em que dera seu primeiro beijo.

Sim, ele era um rapaz um pouco atrasado, pelo jeito pouco confiante e sua dificuldade em fazer amigos. Já ela, com apenas treze anos, era bem mais experiente e articulada socialmente.

O cenário real é uma cidadezinha de interior no final dos anos 90, época em que os jovens resgataram a moda e a música dos anos 70. Assim, ela se apresentava, em sua imaginação, como uma fada hippie pé-na-estrada, cabelo dourado ao sol sobre um gramado verde, o que o fazia lembrar daquelas florezinhas amarelas que invadiam a cidade durante todo o verão.  

Ele queria estar com ela a toda hora, para ouvir sua voz, sentir seu perfume e, auge dos auges, ganhar mais um beijo como aquele do momento crucial em sua vida. Ela teria percebido que era o seu primeiro? Ele ficava horas e horas lembrando daquela cena, sentindo a sensação indescritível, as línguas dançando em círculos, o hálito quente, o sabor do brilho labial de morango...

Para sua extrema felicidade, houve outras vezes. Foi em uma delas, de tão satisfeito, que lhe deu de presente um de seus discos, de uma banda que ela gostava. Adorou a forma como ela parecia incrédula, perguntando “sério?” ao receber o mimo. Sim, era muito sério. Ela o fazia “pirar” e merecia muito mais. Obviamente essas palavras não saíram de sua boca.

A comunicação entre eles era limitada. Talvez pela timidez, trocavam poucas palavras quando estavam juntos. Ainda assim, para ele, eram namorados. Mesmo nunca tendo conversado a respeito.

Foram havendo algumas ligações telefônicas muito envergonhadas, alguns pequenos encontros, até que um dia ele precisou voar daquela cidadezinha. Ela ficou, mas pouco depois foi embora também, para outro lugar, ainda mais longe. Era claro que a alma dela era grande demais para ficar lá. Precisava de aventuras, de descobertas, de experiências, de perigos e de pessoas mais loucas.

Nunca tive a chance de dizer o quanto a amava, nem de como meu coração batia forte quando a via ao acaso, andando pela rua com seus longos cabelos esvoaçando ao vento. Também nunca agradeci pela memória do primeiro beijo, gravada até a eternidade na minha alma imortal.

Hoje a vejo pelas fotos e o que vejo é uma linda e livre mulher, viajada, universal, culta, sexy e dona de um refinado sarcasmo do qual já dava sinais na adolescência. É uma diva, femme fatale, top model, rata de praia, musa, disco queen ou algo assim. É muito difícil defini-la acompanhando somente pelas redes sociais, mas nenhuma definição abraçaria o que ela é, de fato.

Uma vez li que o dente de leão, aquela florzinha amarela que dá no verão e se transforma em uma bola de penugem branca que gostamos de assoprar, se espalhou pelo mundo inteiro por conta disso. Ele viajou continentes e chegou a terras distantes, por suas características aéreas. Pois é isso que ela é: um dente de leão. Quando ao sol, brilha lindamente, mas não foi criada para ficar presa e portanto viaja eternamente pelo vento, causando admiração e amores, que ficam marcados, como ficou meu coração.  

Recentemente, finalmente conversamos. À distância, é claro, pois ela é inalcançável. E, lembrança das lembranças, me contou que tem, até hoje, o disco que lhe dei e a memória daquele dia. E por alguns instantes voltei a me sentir como aquele menininho, entregando flores para uma menininha de quem recebera um beijo.


terça-feira, fevereiro 20, 2024

O Defumador (L.F.Riesemberg)

 


Às sextas-feiras era o dia de defumar a casa. Não sei de onde surgiu tal costume, mas minha mãe sempre tinha três caixas de diferentes defumadores em tabletes, e religiosamente, uma vez por semana, cumpria o ritual, tendo a mim como ajudante. Primeiro pegávamos os tabletes, que eram de diferentes colorações - um verde, outro amarelo, outro vermelho - e atendiam por nobres nomes como Hei de Vencer, Abre Caminho e Anjo da Guarda.

Em seguida os acendíamos, com certa dificuldade, sempre gastando vários palitos de fósforo no processo. Somente após a ponta acender com uma chama, a qual rapidamente apagávamos com um leve sopro, é que a fumaça começava a esvoaçar e dávamos início à peregrinação doméstica. Mamãe na frente, de chinelos de dedo e lenço amarrado na cabeça, segurando o pires com os três defumadores equilibrados esfumaçando, e eu atrás, a seguindo. Íamos orando mentalmente, pedindo aos bons espíritos que limpassem o ambiente e que todo o mal se afastasse do nosso lar.

Começávamos pela sala, fumegando cada canto, inclusive atrás do sofá, pois poderia haver ali algum espírito escondido. Mas aonde quer que a fumaça branca chegasse, varreria todo o mal invisível que lá se ocultasse. Então íamos aos quartos, os preenchendo com o odor adocicado de ervas e serragem. Nenhum cômodo era esquecido, nem mesmo a despensa, a churrasqueira, a garagem. Por fim, dávamos a volta na casa, sempre em silêncio, desejando a proteção dos anjos da guarda, e deixávamos os tocos dos defumadores terminando de queimar em um canto meio escondido na área externa, ao chão, para papai não ver quando chegasse do trabalho. Não que ele proibisse nosso ritual, mas ele não acreditava.

Passados muitos anos, relembro nossas defumações e percebo que, só depois que cresci e interrompemos aquele costume, é que as coisas tristes começaram a acontecer. A razão diria que uma coisa não tem nada a ver com a outra, e que quando crescemos o normal é que a vida pare de ser cor-de-rosa como na infância, e que deixemos de crer nas fantasias de então.

Mesmo assim, debaixo dos meus cabelos grisalhos, dou uma olhada ao redor, sentindo o turbilhão em que se transformou o lar formado, e desejo que as coisas possam voltar à simplicidade dos tempos de criança. Que bom seria acender um defumador e espantar todos os maus espíritos que causam tamanha infelicidade, afugentar os monstros que ainda assombram, mais assustadores do que nunca. Mais que isso, que bom seria percorrer os cômodos desta casa atraindo a proteção de guias, a bênção de anjos, a alegria de seres iluminados.

Sozinho, desolado com os males que frequentemente se abatem sob este teto, retiro da sacola sobre a mesa as três caixas retangulares da loja de produtos religiosos, e observo as embalagens idênticas às da minha infância. Acendo os três tabletes, com a mesma dificuldade de antes, quase queimando a ponta dos dedos, e após um sopro desajeitado vejo a fumaça branca tomar conta, adocicando o ar ao redor com seu conhecido perfume de serragem, alecrim e alfazema.

Percorro os cômodos da casa com a fé de que aquela fumaça espantará cada espírito que causa meus dissabores, e que tudo o que sempre desejei chegará rapidamente até mim. Espalho a doce emanação por trás de cada objeto, dentro de todo armário, até mesmo pelo boxe do banheiro, fazendo minha prece mental, agradecendo por, apesar de tudo o que houve nas últimas décadas, eu ainda estar por aqui, sobrevivendo, com a coragem para tomar rumos desconhecidos.

Naquele dia eu não sabia, mas estava cercado por uma legião de bons espíritos, que conforme eu andava pelos cômodos iam me enchendo de ânimo para não desistir. E o mais iluminado deles, de chinelos de dedo e lenço na cabeça, caminhava à minha frente, me inspirando, me abençoando, me guiando. “Tenha paciência, filho, que teus caminhos estão se abrindo outra vez”.

quarta-feira, julho 26, 2023

A Japonesinha (L.F.Riesemberg)


 Rick não estava muito interessado naquele encontro, mas como há muito tempo não beijava ninguém, resolveu que aproveitaria a chance. Havia conversado muito com ela pelo bate-papo e uma única vez ao telefone. Ela parecia fazer o tipo ingênua e boa-moça, que ria de todas as suas piadas. Fisicamente, a única descrição que tinha dela era a de ser “descendente de orientais”. Não era o que ele queria, mas aceitava.

Encontraram-se na frente do shopping, como era comum. Ela atrasou, pois havia esperado na entrada errada, o que gerou os primeiros risos entre os dois. Decidiram ir a outro local e caminharam alguns quarteirões – em cujo tempo ganharam alguma cumplicidade. No caminho, Rick pensou: Ficarei hoje com ela, mas será a única vez.

Ele nunca havia feito isso. Toda vez que alguém demonstrava interesse, ele se apaixonava. Estava cansado de sofrer. Queria simplesmente curtir, como muitos jovens faziam. Desta vez não se sentiria culpado por não iniciar um relacionamento sério depois de alguns beijos. Queria apenas a diversão daquelas horas e depois dispensaria a moça, por mais que essas palavras não caíssem muito bem.

Compraram os ingressos para o filme que estreara, mas ainda havia uma hora para a sessão. Caminharam lado a lado, pelas lojas de discos, conversando sobre música. Ela sempre sorridente e falante. Havia uma luz especial nela, quase infantil. Ele estava contido, mas apreciando o momento. Sentia como se tivesse levado uma criança para passear. Porém, a intenção de beijar na boca não cessara, e os pequenos esbarrões que davam sem querer na caminhada apenas aumentavam sua vontade.

Era evidente que ela também queria. Às vezes ele a pegava encarando fixamente, por uma fração de segundo, o admirando, mas a timidez os fazia disfarçar. Até que chegou a hora de ver o filme.

Na sala escura, a tensão subiu. O filme era bom, então Rick não quis tirar os olhos da tela. Mas, num ímpeto de audácia, avançou os dedos para a poltrona ao lado e tocou a sua mão. Foi um misto de ingenuidade com o mais alto atrevimento, e aqueles dois quase-estranhos passaram a hora seguinte de mãos dadas, como se fossem um casal.

Ao fim da exibição, veio a dúvida: seguiriam segurando a mão um do outro? Ou se largariam e agiriam como se nada tivesse acontecido? Quando as luzes acenderam e era hora de levantar, ela olhou para ele e ficou novamente encarando, desta vez sem desviar, dizendo muito com aqueles olhinhos puxados. Ele, compreendendo, avançou a boca para a dela e deram ali seu primeiro beijo.

Foram segundos mágicos, como sempre é o primeiro beijo em alguém. Quando terminou, já eram pessoas diferentes, quase como uma só. Saíram do cinema caminhando de mãos dadas da maneira mais natural possível.

O resto da tarde foi de muitos beijos. Entre um e outro havia aquelas conversas triviais que os animavam. Uma delas sobre cachorros. Descobriram que ambos tinham cães da mesma raça: Akita. Assim, a tarde se esvaiu muito rápido, e chegou a hora da despedida.

Diante da estação, abraçados, a noite começava a cair. Quando a condução dela estava chegando, ele perguntou se ela havia gostado do dia. “Muito”, respondeu. “Hoje foi muito especial”. E aquelas palavras tinham um sabor agridoce, pois ele sabia que aquilo nunca mais se repetiria.

Ele chegou em casa satisfeito e pronto para a próxima. Aquela japonesinha ficaria guardada na sua memória, mas nunca a procuraria novamente. Ela ligou dias depois, desejando um novo encontro, mas ele disse que não podia ir, e assim perderam contato.

Passaram-se mais de vinte anos daquele dia. Rick pensa em sua vida, e acha que, se tivesse ficado com aquela jovem simpática e ingênua, iluminada, que estava realmente interessada nele, muitas das suas decepções atuais teriam sido evitadas. Como seria sua vida se tivessem casado? Onde estará a japonesa hoje? Infelizmente não há nenhuma pista para procurá-la, e mesmo que houvesse, hoje ela não seria mais aquela moça graciosa, como eu não sou aquele jovem e impetuoso Rick. Eu não construí nada do que me orgulhe e, por isso minha luz se apagou. Estou envelhecido e morrendo...

Ainda bem que possuo, ao menos, a lembrança daquele dia feliz, em que fui amado por uma jovenzinha de olhos puxados chamada Luciane. É o que me resta: todos os dias fecho os olhos e me transporto para aquela tarde. Foi um dia quase banal, mas que hoje tem um gosto muito diferente.

Obrigado por este presente. Desculpa por ter estragado tudo. Espero, com minhas últimas forças, que a sua luz continue brilhando.